Raízes, suponho?

    "Quem sou eu?" Imagino que muitos de vocês já devem ter se perguntado isso em algum momento de suas vidas.  

    A busca pela identidade é algo com o qual todas as pessoas devem lidar ao longo de suas vidas. A verdade é que, quando você menos espera, ao encontrar "identidade", você voltará a se perder à procura de uma nova identidade, algo que a reforce ou de algo que renove completamente aquilo que te faz sentir parte de algo. Essa eterna busca por saber quem somos é povoada por inúmeros sentimentos e sensações que nem sempre são boas. A busca de uma identidade nos leva a nos perguntar não apenas "quem sou eu?" mas também "a que lugar no mundo eu pertenço?" e "para onde devo ir?". Isso pode ser muito difícil e desafiador para a maioria das pessoas, pelo menos foi para mim. A identidade é a busca do que nos faz sentir inteiros, é a substância daquilo que completa nosso ser no mundo, ou "Dasein", como diria Heidegger. Ninguém vive sozinho, sem identidade e lugar no mundo.

    Nós, como pessoas, por mais óbvio que pareça, não somos pontos isolados em um mapa, embora isso possa às vezes parecer que é verdade; que somos pontos em um mapa, que às vezes se movem de um lugar para outro, rastreados por uma linha do tempo. Basta olhar para seu histórico no Google Maps, você vai se surpreender, se ainda não o desativou — desativar o histórico não impede que salvem suas informações e usem como e quando quiserem. Para ser sincero, fiquei surpreso ao ver meu mapa. Na verdade, fiquei muito triste e surpreendido ao mesmo tempo ao perceber minha própria irrelevância no grande esquema das coisas. Quando vi meu histórico do Google Maps pela primeira vez, me lembro de olhar para ele e ver como fazia o mesmo trajeto de casa para a faculdade todos os dias. Parecia que minha vida era apenas isso: um ponto no mapa, conectando os mesmos lugares todos os dias. Nesse momento tive uma epifania existencialista que me derrubou por alguns instantes. A verdade é que as coisas não são tão... chatas.

    Talvez sim, sejamos alguma espécie de pontinho no mapa se vermos por "cima". Mas, também somos indivíduos conscientes de sua própria existência em um plano astral (que as pessoas chamam de mundo material, às vezes) e, sem dúvidas, estamos conectados com algo. Precisamos estar conectados. Essa necessidade intrínseca de estar conectado com as coisas e com os outros, sejam eles seres vivos, materiais ou loucuras auto-reforçadas de nossas mentes como, digamos, a crença em "olhos d'água", "curupiras" e "seres outros-que-humanos", como diriam os antropólogos culturais, nos tornam eternos andarilhos por uma conexão. Buscamos algo que nos dê um lugar onde localizar esse ponto onde estamos no plano existencial, que nos dê uma referência, pelo menos palpável, para dizer "eu sou isso" e "aquilo" me define.

    Identidade é uma coisa complicada e acho que é natural pensar nisso diariamente. É normal dizer por aí, talvez pelo senso comum, que as únicas pessoas em busca de identidade e pertencimento são os adolescentes, ou crianças que ainda não encontraram uma relação saudável com as instituições, a moral, o bom senso e o Estado, ou, em último caso, os carentes e "fracos" que não têm força suficiente para encontrar sentido no mundo que vivem. 

Eu não acho que nada disso seja verdade.

    Não há nada de errado em buscar uma conexão com o mundo, acho até que a própria renúncia a essa prerrogativa é a morte daquilo que faz a vida valer a pena; viver, mesmo, pelo menos para mim, se trata de experimentar os sentidos e sensações que as coisas e situações nos dão, sem ter medo de ser infeliz. Acho também que quem pensa assim, que são os fracos quem buscam identidade, está, geralmente, na mesma situação de quem ele mesmo critica: buscando uma conexão com o mundo.

    Não faz muito tempo, voltei para minha cidade natal na Argentina com o objetivo de continuar o que gosto de chamar de estudos infames que nunca trazem retorno financeiro. Minha mãe não conseguia entender porque eu queria tanto voltar para lá, afinal, não tinha para onde voltar. Só depois de um tempo entendi o que ela quis dizer com isso. 

    A identidade pode assumir várias formas, algumas pessoas se orgulham de dizer que são americanas, brasileiras, argentinas, uruguaias, gaúchas, paulistas ou cariocas, etc. — apesar de que eu não tenha tanta certeza quanto a essa última identidade, hehe. Outras pessoas podem até ficar felizes em afirmar que fazem parte de um fandom. Eu mesmo, por exemplo, gosto de dizer que "gosto de Touhou", e outros podem até se definir pelo gênero, sexualidade ou simplesmente pelos gostos peculiares que possam ter. Mais uma vez, a identidade assume muitas formas. Quem nunca teve aquele amigo que a única coisa que o definia era "ser gay"? Ou aquele amigo que tem um gosto muito peculiar por Jojo? (Posso ter escrito um pleonasmo aqui, perdão). Há também quem procure raízes numa família perdida, num pai que não existiu, numa mãe que se foi. É normal querer se apegar a algo que apenas faça você se sentir parte daquilo. Parece ser uma necessidade humana, e talvez seja por isso que vivemos em sociedade.

   

    Certa vez, tive um momento de apego a uma identidade, em particular, a uma "comunidade imaginada", como Benedict Anderson chamaria, em seu livro de mesmo nome, o que é a loucura do nacionalismo. Talvez seja por isso que quis voltar para minha cidade natal; minto, foi exatamente por isso. A busca pela identidade sempre me levou aos lugares mais estranhos, tão estranhos para mim que nunca teria acreditado ir a esses lugares outras circunstâncias. Mas é assim que as coisas parecem ser para quem sente a vida mais do que experimenta os sentimentos. Aqueles que são mais... impulsivos.

     Quando coloquei os pés na cidade pela primeira vez em anos, as coisas não pareciam ter mudado (muito). Quer dizer, alguns negócios fecharam e outros abriram, outros mudaram de lugar; e sei que as pessoas envelheceram e podem ter mudado suas formas de ver e de estar no mundo. As coisas mudam, é inevitável, eu sabia disso, mas na minha cabeça tudo parecia igual à como "eu tinha deixado". Claro que eu tinha "deixado" assim, da forma que eu via antes. Em minha mente, aquele lugar estava gravado na memória como cristal. As manhãs escuras e frias de inverno que tive que suportar, mas que valiam totalmente a pena quando percebia as calçadas e ruas da cidade passarem diante dos meus olhos pela janela da van que nos levava todos os dias para a escola. Os hinos patrióticos, canções e marchas que tocavam em dias normais e nacionais com a gloriosa e respeitável bandeira bicolor sendo hasteada ao vento da manhã, antes que todas as crianças saíssem de suas fileiras para entrar em suas respectivas salas para estudar para mais um dia. Sem falar nas inúmeras outras memórias felizes da infância, iluminadas por momentos alegres que compartilhei com pessoas que fizeram da minha vida ali todos os dias uma experiência nova e interessante — afinal, eu estava crescendo. Tudo isso tem um peso muito forte na consciência, na minha percepção da vida. Afinal, é aqui que reside realmente o significado da frase "é preciso uma 'aldeia' para criar uma criança".

    Minhas raízes estavam lá, pelo menos eu acreditava nisso. Hoje, já não sei tanto.

    Identidade é um sentimento, uma percepção, não é apenas uma realidade objetiva que por acaso assumimos ser “nossa” e a acolhemos dentro de nos para nos representar, por alguma razão que nem sempre entendemos, e às vezes, nem objetiva é. A identidade é uma construção que mediamos entre as nossas expectativas e a realidade social, tentando nos encaixar no meio, num esforço de encontrar um lugar onde pertencer nesse vácuo. Estar lá na minha cidade natal e perceber esse descompasso entre minha identidade nacionalista "argentina" e a realidade de que não me encaixo mais naquela sociedade, mais do que me encaixo na brasileira, me fez encarar e entender esse vácuo entre a realidade sentida e a percebida e a "realidade objetiva", como uma paralaxe. Ainda assim, por muito tempo sempre me senti mais argentino do que brasileiro. Talvez eu não tenha sido nem um nem outro em nenhum momento. E é aí que reside o problema da identidade. Algum antropólogo soviético do passado possivelmente argumentaria o contrário, dizendo que são os fatores materiais e "objetivos" como idioma, local de nascimento, cultura e costumes que definem a identidade. Bem, sabemos claramente que isso não acontece no mundo "real", conforme percebido. As pessoas definem suas identidades pelo que acreditam ou gostariam de ser.Afinal, é aqui que reside realmente o significado da frase "é preciso uma 'aldeia' para criar uma criança".

 Nothing can do.

 De qualquer forma, talvez você esteja curioso sobre o que poderia ter acontecido ali, naquela cidade natal onde a bandeira bicolor é hasteada, para eu ter questionado tão fundamentalmente o que eu represento para mim; qual é a minha identidade. Honestamente, não importa mais o que aconteceu lá. O que importa no final é o que aprendi com isso.

 Acredito, hoje, que é preciso saber entender o que é essa busca de identidade. Ou seja, entender que é uma realidade que acontece agora, no exato momento em que vivemos e fazemos nossas escolhas. Normalmente nos definimos pelo que queremos ser sendo que por influência alheia ou por nossa própria vontade, não pelo que de fato somos percebidos quanto ao mundo que nos rodeia. Saber lidar com essa dicotomia, penso eu, é fundamental para não cairmos em arapucas criadas por nós mesmos, principalmente aquelas arapucas imaginárias de pertencimento, que no final, podem nos levar à melancolia, mas às vezes, também, a um esclarecedor bate-cabeça com a parede que separe as fronteiras da ilusão e da materialidade. 

 


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