Kanojo Okarishimasu: um romance sobre a comodificação de relações?

    Pra quem não assistiu esta incrível obra em gerar cringe, Kanojo Okarishimasu é a historia de como um "cara normal", Kinoshita Kazuya, se apaixona por uma "rental kanojo",  em outras palavras, uma namorada de aluguel, chamada Mizuhara Chizuru. Agora, pra quem assistiu, ou leu o mangá; bem, isso daqui é uma perspectiva de quem só assistiu o anime até a terceira temporada. O que eu gostaria de dizer que já foi o suficiente pra mim, mas talvez eu acabe de assistir por pura necessidade de colocar como completo no meu MyAnimeList.

    A primeira vista um poderia pensar que Kanojo Okarishimasu é a romantização da comodificação das relações entre homens e mulheres, afinal, o anime se trata de um cara que faz amizades com garotas namoradas de aluguel, que no caso, quase todas acabam se apaixonando por ele, menos uma, que não o é, a Mami, uma ex-namorada que só quer acabar com o relacionamento bizarro dele com a Chizuru por pura inveja — mais sobre isso, depois. Daria até pra pensar que o anime grita "eles começaram como uma relação de dinheiro, mas o amor foi mais forte", ou algo frufru desse jeito. Mas eu acho que, se a gente ver por uma lente interacionista, quiçá dá pra encontrar algo mais interessante por debaixo disso. Eu acho que Kanojo Okarishimasu é o exemplo mais vívido do liberalismo reacionário na cultura japonesa nos animes. E ao contrario do que alguns digam, quiçá isso seja algo bom! Mentira, não tem como nada nesse anime ser algo bom.

    Se bem da pra analisar os animes e outras mídias, tipo filmes, a partir de ideias extravagantes, eu não acho que toda mídia necessariamente é feita com algum propósito filosófico por trás, como Evangelion. Entretanto, assim como o Zizek analisa filmes e disseca seus simbolismos através de piadas sexuais, acho que toda mídia, em seu contexto, representa e reproduz algum tipo de arquétipo individual e de relações sociais. Pensando em Jung, arquétipos são a reprodução inconsciente de comportamentos e pensamentos que existem na memória coletiva de todas as pessoas. As mídias, nesse sentido, criadas por pessoas de diferentes culturas e backgrounds, dão pra ser analisadas a luz das ideias e arquétipos representados nelas e entender um pouco como a experiência de vida se mostra num cartoon brutal de um gato e um rato, um anime zoado como este do qual escrevo ou em filmes sem sentido como Sharknado.

    Kanojo Okarishimasu é um anime que não esconde nada, de fato, é um anime que sempre tenta fazer você saber o que os personagens estão pensando através de descrições do contexto explicados em letrinhas do lado dos personagens, como se fossem borbulhas de pensamento, só que sem a parte da borbulha e do pensamento. Com um enredo, no mínimo questionável, Kanojo Okarishimasu tenta dar validade, constantemente, a ideia de que o homem é inerentemente promíscuo e que isso é precisamente o que faz que ele se dedique a uma mulher.

 "O homem só existe para agradar as mulheres. Nunca esqueça disso Kazuya." — Chefe do Kazuya, (EP34).

    Mas talvez, uma das coisas mais reveladoras do anime é como a relação entre o protagonista e as garotas se mostra tão reacionária ao ponto de pintar que, essa própria promiscuidade reprimida que leva à necessidade de bancar economicamente as mulheres, e que acaba sendo uma obrigação masculina, é algo louvável! Já que todas as gurias sempre estão competindo pela atenção, e ainda que isso não seja completamente evidente, também pelo dinheiro e tempo do protagonista. As mulheres não só são seres que que se podem comprar, mas também é louvável o homem fazer isso!

    No final da ultima temporada, a gente acaba descobrindo que sem Kazuya, e seus esforços desmedidos em ajudar Chizuru, ela nunca conseguiria cumprir seu sonho de ser atriz. Ao longo de toda a temporada é evidente que, quanto mais ele gasta incondicionalmente nela tempo, dedicação e dinheiro, mais ela desenvolve sentimentos por ele, até chegar ao fim da temporada, onde ela claramente, já está pronta para aceitar seus sentimentos pelo main character (MC). Não, não é o MC que você tá pensando.

    Em algum momento da historia é implicado que "eles são um time", mas a verdade é que a relação nunca deixa de ser uma relação comodificada. De fato, o anime sempre traz a tona essa contradição, como a última das contradições, que claramente deverá ser cruzada no final do anime: "é só uma relação de cliente e  'namorada'". ¿Y no solo con Chiruzu, eh? Perdão, meu argentino interior saiu um pouco, mas com todas as garotas também! Menos a Mami — mais sobre isso, mais depois. Quer dizer, esse tipo de relação é uma relação que se na visão dele quer ser transpassada em algum momento, pelo menos com uma das garotas, a Chizuru, na visão dela a relação encarna o clássico dilema da prostituta: "nunca ela poderia ser amada por ser um produto e não um sujeito". Um dilema que Ruka quebra de inicio, ao desistir de trabalhar como rental kanojo. Lamentavelmente, nosso querido MC não tem interesse nenhum na garota de cabelo azul, que faz blackmail nele para que ele aceite o role performativo de namorado "de teste", até ela, na sua imaginação, virar namorada no futuro por default.

    Até agora você deve estar pensando "caralho, se tu achou tão zoado desde o início, então porque tu assistiu 3 temporadas inteiras dessa porra?". Sinceramente, além do fato dos meus neurônios estarem torrados por tanto estimulo de informação que eu tenho que ver algo tão ridículo como isso, outra explicação talvez esteja em porque Kanojo Okarishimasu seja um anime que é bastante catártico pra muitas pessoas como eu, que lamentam a comodificação das relações e, lamentavelmente, conseguem se ver no papel de gênero performado como o homem otário do protagonista, que o anime, quase sem pudor, faz tu engolir sem cuspe, a diferença do Glizzy Overdrive. E é ai que vem a Mami, a tão esperada ex-namorada que posterguei em falar sobre, duas vezes.

    Ao contrário de Chizuru, que faz de tudo para manter sua vó feliz em busca de seu sonho de ser atriz, Mami por outro lado, a ex-namorada do MC, é retratada como uma utilitária desde o início. Para ela, Kazuya só servia a partir do momento que era conveniente, e quando ele deixa de sê-lo, ela larga ele. Mas isso muda quando ela descobre que ele está numa relação intrincada com Chizuru, fazendo que ela se retrate e volte a querer Kazuya, ou pelo menos, queira destruir a relação de Kazuya por aparentes sentimentos de que seu ego foi machucado. Para ela, Kazuya é um otário, mas ele é um otário útil para ela. Mesmo que ela seja a antagonista da serie, é evidente, em qualquer situação, se um analisar de perto, que dá para dizer que todas as relações com todas garotas da série se pautam por elas se beneficiarem de algo dele: atenção (Ruka), validação (Sumi), vazio emocional (Mami), suporte emocional e econômico (Chizuru) e, em todos os casos, dinheiro (porque ele paga, mais de uma vez, diria até, inúmeras vezes, pra estar com todas em algum momento da história).

Evite o vídeo se não quiser passar cringe.

    Me parece que o ponto todo do anime é passar a ideia de que um homem só é cobiçado quando ele cumpre seu papel social de provedor e suporte das mulheres, o que faz as mulheres entrarem numa briga de ego por um macho, mas com um twist: isso é o que vai salvar as mulheres! Afinal, a relação entre homem e mulher é isso, né? O homem provê e a mulher reproduz. Kazuya é retratado assim, ironicamente, não como um otário útil, um sentimento que pode vir a tona quando um assiste, mas o exemplo ideal de homem! No contexto capitalista, um homem que deve se dedicar as mulheres para que elas possam alcançar seu potencial de verdade, e assim, finalmente trabalhar como um verdadeiro "time", homem e mulher. Mas o mais incrível é que, a partida da igualdade de gênero, se pauta pelo homem tirar a mulher da sua condição de objeto comercializavel no mercado, ajudando e investindo nela com o trasfundo onipresente dessa promiscuidade reprimida, para finalmente comprar ela permanentemente.

    Afinal de contas, o que tirar de Kanojo Okarishimasu? Um triste retrato de arquétipos da inconsciência social sobre a sexualização e objetificação das mulheres no Japão e no mundo? Uma tentativa liberal da relembrar relações tradicionais entre gêneros no capitalismo japonês (aumentar taxa de natalidade)? O retrato da normalização da comodificação das relações sociais? Quiçá... a romantização do cuckismo? Isso fica a sua discrição. O que eu tenho certeza é que, talvez, e mais certamente, eu tive a realização profunda de que foi um erro ter investido tanto tempo em uma história sobre um escravoceta no capitalismo tardio.

Comentários

Postagens mais visitadas