A última barreira do capitalismo: o humano

Como se sabe, “ideologia de gênero” é um termo que se utiliza muito no meio conservador para definir tudo aquilo que tenta acabar com os papeis de gênero, homem e mulher, que tais conservadores dizem ser os “únicos” dois, sem base científica alguma para sustentar o argumento além de assumir que gênero é a mesma coisa que sexo. Mas e se eu propusesse que essa “ideologia de gênero” até que existe, mas  maneira diferente, e é na verdade parte do capitalismo e não parte do espantalho do “marxismo cultural”?

A perspectiva que vou colocar em pauta sobre o gênero, sexo e os papeis sociais que essas categorias têm na sociedade contemporânea é algo complicado, porque se ao mesmo tempo não se trata de uma perspectiva conservadora também não é progressista. Quero explicar aqui do que se trataria tal perspectiva.

Tenho a impressão de que existe uma pressão cultural, capitaneada pelo grande capital internacional do norte, que tende a defender um transhumanismo, muitas vezes hedônico, que se ainda não conseguiu destruir as noções de nação, a ideia de consciência de classe, a noção de família e o pertencimento a cultura local, agora tenta esvaziar a ideia de identidade de gênero e sexo. E eu acho que essa é uma das características mais evidentes da atual fase do capitalismo tardio que parece querer se preparar para um pós-capitalismo, onde o liberalismo transpassa a ideia de liberdade como propriedade privada para o próprio corpo e à própria individualidade. Eu acho que eventualmente todo mundo vai ter "direito sobre seus dados", mas ao mesmo tempo que puder lucrar com isso, de alguma maneira, você vai virar uma comodity em todos os outros aspectos (isso se já não o é hoje em dia). Se parar pra pensar, essa pressão cultural que já erode a noção de coletividade desde o surgimento do capitalismo e a modernidade, vem a por em questão não só as características do que faz um homem um homem e uma mulher uma mulher, mas também os papeis que esses dois principais gêneros (historicamente), ainda que não únicos hoje em dia, tem tido para a ordem social até a data atual.

Posso estar imaginando coisas, mas não é evidente que a indústria audiovisual de Hollywood além de importantes personalidades na literatura e da vida pública estadunidense como Yuval Harari, Ray Kurzweil, Michio Kaku, Aubrey DeGrey, Peter Diamandis e Jason Silva tem advogado constantemente na inclusão de perspectivas transhumanistas como ordem do dia?

Não me parece estranho pensar como essa pressão cultural de reversão, mistura e finalmente pulverização dos papeis vem de encontro com a comodificação das relações familiares que surge com o capitalismo transformando elas em meras relações mercantis onde muitas vezes as relações entre pais e filhos se medem por quanto um pai compra coisas aos filhos e até quando o filho vai embora da casa para ser menos um peso econômico, com o (cada vez menor) intuito de formar uma outra família nuclear, ou em outras palavras, uma mini família econômica. Cada vez mais, parece que famílias hoje em dia já não se baseiam mais na função de defender e acomodar seus próprios e sim em manter-se produtivos dentro da sociedade capitalista. Quer dizer, cada vez mais jovens moram com roomates para pagar aluguel e muitos decidem não formar uma família, ou se quer, qualquer tipo de estrutura familiar com esse fim. Pessoalmente, eu não vejo nenhum problema em outros tipos de estrutura familiar, seja ela monogâmica, poligâmica, de casais homossexuais ou outros. No fim, eu acho que a família deveria ter função social de manter a harmonia emocional, ajuda econômica e talvez de criar a geração do futuro (seja adotando ou não). Entretanto, não é isso que a gente vê hoje em dia. Ao meu ver, cada vez mais, parece impossível formar ou ter uma estrutura familiar minimamente coerente no capitalismo voraz que promove o consumismo, a pornografia e a liberdade sexual sem responsabilidade emocional. E o pior, a ideia de comunidade e de pertencimento se pulveriza através da digitalização da vida, fazendo que o sentimento de "pertencer" se esvazie em interações em plataformas e sentimentos vagos, ainda que genuínos, de cercania na digitalidade.

Se existe uma ideologia transhumana sendo posta em pauta no discurso popular, não seria estranho que o fim e o começo dessa ideologia fosse burguesa e tivesse só um fim: capitalizar tudo, até os corpos e mentes das pessoas. Quer dizer, já parece ser isso que que esta acontecendo não? Por isso a retórica popular que surge da guerra entre sexos, a comodificação das relações entre as pessoas (relações de aluguel, Onlyfans, etc.) e o fim dos papeis estáveis e "incondicionais" de uma família (falo daquela grande família estendida). Não quero que fique mal entendido aqui, é claro que ao longo da história a família sempre teve um papel econômico, afinal filhos parecem ter sido sempre queridos como mão de obra para manter a sobrevivência da família, seja na fazenda ou no cuidado dos mais velhos, mas essa realidade mudou bastante desde o surgimento da divisão do trabalho e da industrialização onde pessoas, outras que filhos, vendem sua força de trabalho para esse fim de manter a sobrevivência num "mundo globalizado de massas". Em um mundo onde a função dos "filhos do campo" foram terceirizadas, todas as outras relações familiares parecem ser pautadas pelo econômico; um mundo onde cada vez mais filhos começam a virar pesos econômicos que um decide ter por capricho e não por necessidade. Se um filho no passado era uma obrigação moral ou como necessidade econômica, no mundo contemporâneo é cada vez mais visto como um fardo ou investimento futuro (no contexto da precarização do trabalho e da aposentadoria).

Agora bem, minha crítica não é em relação às transformações da identidade. Quero dizer, eu não acho que exista nada de errado na existência de gêneros outros e sexualidades outras, afinal, sexo é diferente de gênero e cada pessoa é uma experiência, e essa experiência é algo único que, eu acredito, deve ser respeitado e defendido. Apesar disso, o transhumanismo pós-capitalista que devem da estrutura capitalista atual e estas elites globais do ocidente e seus thinktanks, não pretendem defender essas experiências genuinamente porque se importam com as pessoas trans, gays, não-binárias etc., mas para capitalizar os corpos e as ideias dessa experiência com o fim expandir e reproduzir seu status de classe privilegiada.

Outro importante ponto, pelo menos ao meu ver, é como parece ser que esta imposição de que não existem papeis fixos de gênero, e naturalização da fluidez, parece afetar os papeis históricos de gênero. Por exemplo, o papel do homem é um papel que hoje parece estar especialmente abalado pelas consequências do capitalismo e a "ideologia de anti-gênero". Por um lado, com a conquista de diversos direitos da mulher através das primeiras ondas do feminismo, o papel da mulher parece tentar, cada vez mais, assumir características masculinas, fazendo com que ser homem pareça ser cada vez mais irrelevante na mente coletiva. Historicamente o papel de homem tem sido caracterizado pela defesa pessoal da família, da provisão de necessidades materiais e em geral, da garantia da segurança familiar. Hoje em dia o Estado cumpre o trabalho de segurança e a divisão do trabalho faz o resto. O homem não é necessariamente o único que pode cumprir esses papeis, (se bem que aqui no Brasil a segurança não é a melhor). Nesse sentido, ser homem hoje em dia adquire características mais sutis e puramente performativas como garantir o "sentimento de segurança" a través de traços masculinos como perseverança, tranquilidade e estabilidade emocional e econômica, mas, ironicamente, em função da precarização do trabalho, isso faz que muitos poucos homens sejam verdadeiramente capazes de alcançar esse ideal. Por outro lado, o papel de mulher não tem sido poupado. A mulher historicamente tem tido o papel de criadora, do lar e cuidadora. Contudo, hoje em dia é esperado que uma mulher seja bem sucedida e independente, e ao mesmo tempo, que cumpra um papel maternal. Caso não seja cumprido, muitas vezes em contraste com a necessidade de ser bem sucedida, pode até levar ela a ser mal vista pelos pares, principalmente quando mais velha. 

Agora bem, se é verdade que a liberação sexual quebrou certas barreiras históricas para as mulheres, eu acho também que a mulher nunca foi tão objetificada e sexualizada na historia da humanidade como hoje com o fim de satisfazer os prazeres masculinos. É mais, com a pornografização da cultura, hoje em dia o homem não precisa necessariamente mais de uma mulher cis para se satisfazer sexualmente, além do fato de que ser homossexual hoje não é tão tabu como antes, o corpo trans entra nessa loucura capitalista como objeto "extravagante" onde várias mulheres trans, muitas vezes marginalizadas, são colocadas em contexto de fetichização e objetificação.

Ser mulher ou ser homem já não parece importar tanto, pelo menos para as sociedades mais "desenvolvidas", e impor isso em sociedades do sul global parece ser imperativo para eles também, para que o corpo seja algo completamente comodificavel, não só no norte, mas também no sul. Não me parece estranho ver cada vez mais pessoas em crise de identidade, sentindo que não são o suficiente ou que prefiram "experimentar" gêneros e sexualidades das quais muitas vezes elas nem se identificam só para se sentirem parte de algo, afinal, papeis de gênero estão cada vez mais diluídos.

Agora bem, o que deveríamos fazer? Culpar a comunidade LGBT+ por uma suposta "corrupção" da cultura ocidental? Se você esteve lendo até aqui e pensa isso, lamento, mas perdeu o ponto do meu argumento.

A crítica que eu faço não é contra se sentir parte de um gênero e fazer um papel ou outro, ou ser de um sexo e atuar de outro modo. A crítica da diluição do espectro do gênero e a sua transformação em "coisa", reside no seu fim de capitalizar o corpo e a identidade como coisa que se "consume" e não coisa que se "experiência" em sociedade, em comunidade. Tentar impor a objetificação dos gêneros me parece ir em contra daquilo que nos faz, em parte, humanos, e isso é algo que eu não consigo defender. Afinal, eu acredito que a experiência humana se trata de não só ser uma individualidade, mas também de experiênciar a vida em sociedade, em pele e carne como parte de uma comunidade local (seja na internet, no campo ou na cidade) e cumprir papeis sociais e comunitários.

Sinto que a cultura capitalista está criando ilhas de indivíduos que se vendem e se compram. Nesse sentido, eu assumo que sou um humanista tradicional em certa medida, já que defendo a comunidade.

Mas pensemos um pouco, se o futuro que o transhumanismo burguês defende é um futuro onde as pessoas não só já foram estripadas da sua consciência de classe, é dizer, não se sentem parte de uma classe trabalhadora, já não se sentem parte da família nuclear e também não sentem que fazem parte de um gênero e por tanto, não tem papel social na sociedade, o que sobra? Exato, apenas a individualidade. Agora, você deve pensar, "Qual é o problema? Seria interessante viver como uma alma livre, não é?". Lamentavelmente a gente não vive como alma livre no capitalismo.

Um indivíduo que não faz parte de nação alguma, é um indivíduo-coisa cosmopolita que pode trabalhar pra qualquer empresa ou tecnofeudo e pode vender e comprar qualquer parte de si, tal como um asset financeiro. Descorporalizado, sem gênero, família, classe ou lugar. Apenas um residente do mundo do futuro da internet que funciona dentro do algoritmo e vive pelo prazer. Me lembra uma novela muito interessante...

O ponto de tirar as amarras sociais do indivíduo parece ser clara ao meu ver, fazer com que não exista limite de potencialidades para a pessoa, que agora, desgarrada de qualquer traço de humanidade possa existir como indivíduo e coisa ao mesmo tempo. Imagine as inúmeras possibilidades de fazer parte de um mundo onde você pode comprar e ser comprado? Sua identidade não é mais moralmente sua ela é um asset, nem sua família, nem seus amigos. Mas o que importa nesse mundo transhumano é que você pode ser qualquer coisa e se relacionar com qualquer coisa, bem, se tiver dinheiro/créditos, sei lá.

Por isso, eu ainda acredito que é importante que encontremos uma forma saudável de respeitar todas as experiências de gênero e sexo, mas garantindo que esses sejam tratados como experiências coletivas, parte de uma associação entre indivíduos e não uma troca entre objetos comodificáveis. Mas especialmente, tendo consciência do papel que o sistema capitalista tem na estripação das amarras sociais que nos fazem parte de uma comunidade local, nacional ou de classe, porque se esse não for mais o caso, é indiscutível que o caminho já está dado para que crianças nasçam em tubos de ensaio e o sexo, o gênero a família e a comunidade sejam coisas fluidas que não tenham mais função social para o futuro da raça humana, a final, esse futuro seria de indivíduos e coisas ou do indivíduo-coisa.

 



Comentários

  1. Cara, seu texto soou como uma das músicas do Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros (uma específico: Sílvia Pfeiffer) e os livros desse cantor também (tem um deles chamado Favelost — o único que eu tenho — que mostra como o mundo pode ficar em breve — ou já é).

    Lendo seu texto, eu me senti dentro de uma distopia cyberpunk, tenho medo do futuro... De como serão as coisas daqui pra frente...

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    1. Musica muito legal! Eu não conhecia e adorei, vou colocar ela aqui nesse post. Se tu ver o resto do meu blog, eu geralmente eu coloco musicas no fim dos meus posts, mas nesse eu não achei uma boa musica. Obrigado pela recomendação. Agora, sobre teu sentimento, eu lamentavelmente acredito que esse é nosso futuro daqui de 50 a 100 anos e estamos apenas vendo uma pequena parte do futuro, assim como no século XIX um trabalhador americano ou europeu viu a coca-cola surgir sem saber que essa "marca" viraria um oligopólio de consequências socioeconomicas e ideológicas globais. É por isso que eu defendo voltar a comunidade, a mínima razão moral e dar a contra a esse mundo tecnocapitalista inumano. É nosso dever destruir esse mundo contemporâneo e recobrar as rédeas do nosso destino social, humano e espiritual.

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    2. Sim, temos que evitar o Admirável Mundo Novo ou aquele mundo tecnoapocalíptico que vemos na maioria dos cyberpunks.

      Eu desejo paz pelo resto de minha vida e realizar meus sonhos, antes de morrer.se eu morrer sem nunca ter feito nada do que eu queria e sonhava em fazer, vai ser um arrependimento incomensurável e triste.

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