Eu quero acreditar na magia! Mas não é tão fácil assim

         Se existe uma frase com a qual eu mais concordo com Žižek, é quando ele fala sobre o amor e como ele se considera "incurávelmente romântico", no sentido de que ele defende a ilusão do amor, mesmo que ela seja um ilusão, já que como ele explica, o ato de se "apaixonar" se trata de um ato de caída a um estado mental que decorre de uma contingência, é dizer, um "evento", no sentido lacaniano, que muda completamente a perspectiva de vida da pessoa e, por tanto, a condiciona, quase assim como uma mudança de paradigma, a alternar seu rumo bruscamente. Se apaixonar é isso, cair numa ilusão, numa loucura, numa contingência que altera teu estado percepção do mundo. E estranhamente ou não, eu acredito que a paixão, assim como drogas como o álcool e entre outras, igualmente viciantes, seja por condicionamento ou dependência, são muito importantes na construção de "perspectivas de vida", ou em outras palavras, de magias.

        No trabalho de Victor Turner, "A Selva dos Símbolos", esse autor africanista britânico, que eu pessoalmente gosto muito de trabalhar, vai fazer uma etnografia com os povos ndembu no centro daquele massivo continente, e ele vai falar bastante sobre as estruturas dos rituais e costumes que, pelo menos em Mwinilunga, onde ele fez seu trabalho, tratam, muitas vezes, da relação com a bruxaria e outros tipo de relações com entidades outra-que-humanas. Agora bem, eu não quero entrar muito no tema sobre o culto ihamba do qual ele descreve com bastante atenção, mas para ter uma ideia, Turner constata que existem médicos xamãs que curam pessoas de "assombrações",  já que quando alguém fica doente, os ndembu não entendem a doença como uma coisa "natural" (vírus, infecção bacteriana, etc.), mas sim de assombrações. Uma das assombrações em especial, se trata da do "caçador". Os ndembu tem uma cultura de caçador muito forte, e nessa época (1950~60) existia um culto particularmente importante aos dentes incisivos centrais superiores dos caçadores (chamados de ihamba, por isso, culto ao "dente do caçador"). Para eles, esses dentes basicamente tem um "poder" ou uma "sede" de sangue, que no contexto do uso de armas de fogo para a caça, guardam o "espírito do caçador" que morre.

    No culto ao ihamba, esses dentes e que decorre ser cuidadosamente guardados numa bolsinha "especial" (que é literalmente só uma bolsinha branca de tela), dão o poder do caçador "de ver as presas" e outras coisas que caçadores precisam para caçar, no entanto, nem todos os mahamba (ihamba em plural) são iguais. O ihamba pode ser também de almas torturadoras, e então acontece que eles "escapam" das bolsas (ou quando não são retirados do caçador morto) e desejam carne e sangue dos vivos (por alguma razão eles tem agencia própria também), isso quer dizer que os dentes literalmente "saem voando" é possível que eles acabem "se cravando na carne das pessoas para saciar sua sede de sangue" e causem dores e doenças às vítimas, geralmente da própria família do caçador falecido ao qual os mahamba pertenciam.

     Agora, entendendo o culto ihamba e como essas pessoas de Mwinilunga vem o mundo, você pode até achar meio estranho, mas compreensível, afinal eles não conhecem a medicina. Mas, claramente, se visse uma pessoa na sua rua dizendo com convicção que ela tem um dente cravado de um caçador que está deixando sua perna necrosada, quando claramente você consegue ver que existe uma razão "medica" para explicar isso, acharia que a pessoa é louca de cara já que não existe lógica possível que explique isso que está acontecendo na sua frente.

    A magia, você pode pensar, "não é algo real" é algo fabricado pela falta de conhecimento. Augusto Comte, você deve ter estudado isso no ensino médio, fala disso em algum momento sobre os "estágios" do conhecimento e da civilização e a noção de que o mito e fetiche surgem quando as pessoas não conseguem explicar algo. Nesse sentido, a magia é uma ilusão de realidade, a magia é aquilo que preenche o vácuo da ignorância e do desconhecido, por isso ela não precisa explicação prévia, ela simplesmente "preenche" e vira realidade. 

Sob veneno da lógica materialista, toda magia evapora como água.

     Quero dizer, isso não é novidade, a magia é mentira, Papai Noel não existe e você já superou isso a muitos anos, né? Mas, e se eu te dissesse que Papai Noel existe e que os espíritos, os duendes, o saci, os peques, o mal de olho, exu e qualquer outra coisa que humana existe de verdade? E se a magia não for simplesmente "aquilo que preenche  o vazio da ignorância" e faz a vida ficar mais fácil de explicar? E se a magia fosse outra coisa de verdade? Eu quero explorar o mundo dos fenômenos e o mundo das coisas mágicas, e te dizer porque talvez a gente deveria reviver e reencantar um mundo com mais magia e coisas outra-que-humanas.

    "Logicamente" (na perspectiva do que é material) a magia não existe como coisa, mas existe como conceito. No entanto, preste atenção à tipificação que eu dei. Magia "logicamente", não existe. E Turner em toda sua obra, sendo um bom antropólogo, quando vê os médicos ndembu fazendo incisões nos seus semelhantes para tirar "dentes voadores" cravados embaixo da pele, os vê com um estranhamento e insipidez que qualquer antropólogo deve ter, no entanto, ele não é suficientemente materialista para afirmar ou negar a existência de magia, ou que de fato um dente foi ou não tirado efetivamente do corpo dos afetados pelos ihamba voadores (apesar dele diferenciar entre o que é material e o que é imaterial). Aonde eu quero chegar aqui?

   Vamos pra outro exemplo antes de chegar ao ponto. A gente na verdade não precisa sequer ir pra a África ou muito longe pra ver que existe "magia" em todos os lados da nossa vida, apesar dela estar obviamente em desuso e provavelmente em estado terminal. Não por nada Weber dedicou uma parte de sua obra para falar de como o capitalismo e a técnica literalmente "desencantaram" o mundo. Mas não quer dizer que a magia acabou, ela simplesmente assumiu outra forma. Os mal de olhos, os empachos e suas curandeiras locais católicas ainda existem no interior de países latinoamericanos. A bruxaria ainda existe em alguns lugares do interior da França e Fravreet-saada é exemplo vivo disso. Nem falar dos rituais kolla para alimentar a terra enterrando comida para a Pachamama e os sinais da fumaça das cozinhas andinas que falam sobre o clima, os lagos que comem pessoas e tantas outras coisas mágicas que decorre existir no mundo.

    A magia sempre fez parte essencial de nossa vida desde os tempos remotos e hoje nós estamos muito contaminados com a "toxina da anti-magia", como diria Maria de Umineko. Uma toxina de anti-magia que decorre da lógica, da técnica mas principalmente dum objetivismo social (Ayn Rand) que vê a narrativa de plantão como um instrumento de dominação e controle. Hoje em dia nenhum urbanita minimamente educado acredita em nada além daquilo que a narrativa mais conveniente de lhe diga. Nem precisa ser necessariamente dos meios de comunicação mais escutados e vistos, é simplesmente a narrativa que mais se encaixa na proposta de vida da pessoa. 

    É só tu entrar na internet para ver que todo urbanita hiper-conectado sabe que ela é um antro de bolhas e nichos que destroem a coesão social com essa hiper-fragmentação do discurso e da narrativa. Ninguém mais sabe de nada, mas ao mesmo tempo todo mundo sabe de tudo. A técnica consumiu a vida, matou a magia e a lógica instrumentalizou tudo isso a favor do consumo em massa.

    A magia, na minha visão, não se trata, nem nunca se tratou, como alguns positivistas e materialistas diriam, de "ignorância". Muito pelo contrário, a magia é conhecimento e é muito mais que isso, mas por isso mesmo que é muito difícil acreditar na magia. A magia se trata de construir mundos, se trata de criar um campo comum onde duas ou mais pessoas possam criar uma conexão, uma REALIDADE onde é tudo é possível. É por isso que rituais, magias, crenças no além, em deuses ou Deus e outras coisas espirituais, tem um papel muito importante em dar sentido, motivo e vida as comunidades locais desde a existência do primeiro macaco alucinógeno que chamamos homo-sapiens. 

    Ironicamente, o que vemos no mundo é que a morte da magia e o surgimento de uma "religião à ciência" (a qual é intrinsecamente pautada pelo discurso, como aponta Thomas Kuhn) criou um mundo universal mas intotalizável como diria Pierre Levy, em "Cibercultura", que transforma lógicas em verdades. O que significa que a verdade não importa muito, o que importa é que a pessoa está feliz com sua própria "verdade", a que leu em algum lugar por um "especialista" com trinta doutorados e mil livros publicados, que ganha mais de 5 dígitos e faz palestras no TedX. 

    A verdade é aquilo que alguém "importante" diz e reproduz. Fatos não importam, o que importam são os sentimentos das pessoas e de sua conveniência. No mundo capitalista, hiper-conectado e que aspira ser multipolar, a narrativa dominante ainda dificilmente foge daquela dos países e organizações privadas atlantistas, liberais e transhumanistas.

    Agora, eu não digo que a magia vai resolver o problema da narrativa, do capitalismo ou do bem-viver. Magia e ciência não são duas coisas que deveriam se contrapor, afinal, ambos estão no campo do conhecimento. Mas por alguma razão uma se sobrepôs sob a outra. Quiçá pela lógica do "orientalismo", onde o assombro gerado no ocidente pelas maravilhas da técnica e da "sociedade civilizada" criaram "civilizados e bárbaros" ou pelo modernismo como um todo, mas isso não é um ponto que eu sei responder, então me limito a dizer isso.

    De todas formas, o que eu quero dizer é que, a magia é uma parte fundamental da nossa vida e a gente não percebe isso, grande parte do tempo. Žižek chamaria isso de "ideologia", mas eu acho que chamar "cultura" ou qualquer coisa que uma pessoa "acredite" ou faça por consequência dela de ideologia é realmente puxar a carreta por cima dos bois. Mas, bem, quem sou eu pra dizer isso, né?

    Voltando ao começo, quando eu falei sobre a paixão, loucura, a droga e o Žižek. Você consegue entender onde eu quero chegar com toda essa discussão sobre magia? 

    A paixão e o amor correspondido é talvez uma das magias mais fortes que existem hoje em dia e a que, apesar de que tudo esteja em sua contra, se nega a desaparecer. É impossível a magia da paixão desaparecer, né? O mundo mágico dos enamorados, dos românticos e exagerados, né? Alguém precisa se reproduzir em algum momento, essa fase é faz parte né. Bem, nem sempre e nem para sempre... Inteligência artificial e robôs parecem surgir como um grande concorrente ao seu desaparecimento. Mas a magia também ainda existe na droga, ainda que historicamente tenha feito uma parte muito essencial. Lamentavelmente, ao contrário dos tradicionais rituais quéchua e astecas com drogas onde estas tinham um papel pontual e específico, as drogas hoje em dia não são parte de um processo social onde se cria mundo e magia e coesão social, não, muito pelo contrário, a droga É o ponto em si mesmo e o fim. A magia da droga, hoje em dia, eu acho, ajuda a simular a magia e é por isso que é tão viciante.

    Agora eu me encontro em um campo certamente inexplorado para mim e um pouco fora das minhas capacidades explicativas, e posso estar incorreto, quero dizer, todo meu monologo até agora pode estar errado, mas enfim. O ponto é que, não faz mal dar uma análise, ou melhor, intrigar o pensamento. Durante minha pesquisa de mestrado, sobre comunidades digitais, e ainda nas minhas continuas explorações no VRChat, não me foi incomum perceber, e nunca foi, como as pessoas fazem da droga, no caso o álcool, um ponto em comum para criar socialidades, "mundos" e não se sentirem sozinhas. Estar drogado com outros é uma experiência mágica, qualquer pessoa que já tenha vivido isso pode corroborar comigo. Mas é uma magia de um uso único, que quando seu efeito acaba, tudo o que era fantástico vira cinza no momento que a ultima gota não faz mais efeito no cérebro. 

    E por isso essa magia é uma que é dependente de um componente que não é mágico e por isso é incapaz de criar um mundo, uma conexão verdadeiramente cultural e  social com parceiros sem seu uso. Eu acho que hoje em dia muitas pessoas procuram mundos e fantasias na droga, na paixão temporária, em narrativas e materiais, porque a magia foi completamente extirpada de suas vidas. A magia, a crença e a experiencia social dela, eu digo, ela existe, e é preciso reencontrar e reconstruir ela, sem antagonizar a ciência, para podermos viver construir comunidades mais fortes e robustas.

    Sinceramente, eu não sei como isso seria possível, mas é uma perspectiva que talvez explique muita da miséria espiritual das pessoas no mundo atual de máquinas e telas, onde não é possível ver além da matéria, da luxuria e da necessidade de abundância material e regozijo da carne.

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