Por que as mulheres não são consideradas pessoas e nunca foram
O mundo moderno é mais complexo do que nunca antes, e a vida cotidiana nesse mundo maluco onde celebridades na internet viram ícones do que é sucesso e em onde a enganação vira norma, a mulher vive quiçá a melhor e a pior parte da sua história. Isso fica evidente ao ver como as primeiras e segunda ondas do feminismo garantiram o voto e o trabalho, a terceira ampliou direitos reprodutivos e deu voz a mulheres da classe mais baixa e racializada (pelo menos em grande parte do mundo ocidental) e a quarta onda, a que vivemos hoje, consolida as narrativas de gênero e de libertação sexual feminina. No entanto, hoje a mulher nunca foi tão objetificada e sexualizada como em nenhum momento da história, basta olhar as propagandas, jogos, comerciais, redes sociais e a simples e bruta pornografização da mídia em geral. Em geral, hoje a mulher é vista pela lente masculina e se bem tem liberdades, direitos e privilégios que nunca teve antes, ainda é condenada a ser apenas um objeto de desejo com expectativas sociais surreais.
Agora bem, o começo foi um resumo um pouco simplista do fenômeno do feminismo, já que existem muitas nuances e narrativas mais "modernas" sobre a liberdade sexual e independência do corpo feminino que desde a segunda onda do feminismo com Simone de Beauvior em "O segundo sexo" já se discutiam. Mas, em suma, entender o lugar da mulher na sociedade atual que é vista e mercantilizada como objeto, é um bom lugar para começar a entender que mesmo depois de todas as conquistas, ela ainda não é considerada como uma pessoa e talvez nunca foi em todas as sociedades do globo. E isso, eu acho, se deve a muitos fatores, que, ao contrário do que as feministas de cunho marxista pensam, não só se deve a estrutura e lógica do capitalismo que mercantiliza tudo e todos a sua volta desde sua concepção. É importante lembrar que, na idade medieval, durante o feudalismo, a mulher era vista como propriedade do homem por direito divino, e muito antes, na antiguidade ou até em tempos pré históricos onde éramos caçadores coletores, ela era vista como simples fábrica de bebês, cuidadora ou ajuda na coleta de insumos. Pra entender como a mulher chegou a esse ponto hoje em dia, eu acho que tudo passa por entender que a raiz do problema reside não completamente nos modelos de sociedade como o tribalismo, feudalismo, o capitalismo ou até o socialismo real (vulgarmente chamado de comunismo, no qual durante a União Soviética a sociedade se manteve bastante conservadora e patriarcal, vide a época Stalinista e adiante). A raiz do problema, acredito eu, reside na verdade na nossa cabeça. Mais especialmente na estrutura cognitiva do nosso cérebro e em como fazemos cultura a partir disso, mas mais especialmente em como nossa psique evoluiu ao longo dos imemoriais tempos em que caçar, coletar, ter um teto, transar, fazer nossas necessidades e dormir eram nossas únicas preocupações.
Humanos são bons em reconhecer rostos, padrões, formas e capacidades para subtrair disso significados que fazem sentido para todos. Isso sempre foi algo que era extremamente necessário para nossa sobrevivência, já que sem essas habilidades não poderíamos identificar agressores a amigos, emoções e atitudes dos nossos colegas, criar estratégias de como lidar com ambientes e situações hostis e até diferenciar o que é comestível do que não é, quer dizer, se não estaríamos comendo pedras e não fazendo pizza, Yuval Harari aborda em profundidade isso no seu livro "Sapiens: Uma Breve História da Humanidade". No entanto, essa habilidade de criar significados a partir do entendimento da realidade que percebemos também tem suas próprias desvantagens, como criar preconceitos sobre coisas que nunca vimos a partir da comparação com padrões predeterminados por nossas experiencias anteriores, seja contos dos mais velhos ou experiencias próprias. Preconceito, não mal entendam, é uma coisa que ajuda em algumas situações, como identificar animais perigosos e alimentos tóxicos como certos cogumelos e plantas (a pesar de que algumas pessoas fazerem o total contrário), mas quando a gente aplica essa mesma lógica a um mundo social complexo e tão modular como o humano, isso gera problemas e desentendimentos como o preconceito racial, econômico, político e cultural que todas as sociedades humanas já viveram em algum momento da história, mas hoje em dia, um preconceito que principalmente afeta os povos dominados e marginalizados do mundo e que beneficia nações e povos vitoriosos, que claramente escrevem essa mesma historia, agora "oficial".
Agora bem, a mulher é particularmente afetada por esse enviesamento do pensamento humano, da estrutura cognitiva que molda nossa visão de mundo criada pela evolução, e vou explicar porque acredito nisso. No entanto, agora quero que você pense um pouco fora da caixa. "A final, o que é uma mulher?". Uma mulher é uma pessoa? Uma mulher é um corpo, uma forma, uma estética? Uma mulher são atitudes em relação as coisas ou uma forma de ser? O que define o que é uma mulher? Pessoalmente, e contribuindo para o pensamento de Judith Butler, eu não acredito que a mulher possa ser vista como nada disso. Durante a história a mulher sempre foi colocada numa posição subalterna ao do homem em função de um pensamento binário, onde sua função sempre era a de ser dona do lar, cuidadora das crianças e de ser um suporte emocional ao homem, e nada além disso. E isso é um grave problema social, já que nós como humanos e pessoas na maior parte da historia não vimos as mulheres como pessoas, mas sim como representações ideais do que um corpo humano tomado de consciência deve ser em função das características biológicas e reprodutivas da mulher. E claro, isso também se aplica a muitas coisas, também para os homens e as expectativas ideais do que um deve ser. No entanto, eu acredito que tudo isso acontece porque nós temos muita dificuldade em entender coisas complexas como um todo dinâmico e modular, sempre cambiante, que é o que faz uma pessoa ser pessoa. O que eu quero dizer com isso? Humanos são bons em reconhecer padrões e criar significados e identidades, por isso criamos categorias para cada tipo de coisa ou objeto, tipos de personalidade, estruturas sólidas de governo, sistemas de prevenção, e tantas outras coisas que precisam o entendimento de padrões. No entanto, também esperamos que as coisas funcionem de certo modo ou forma que coincida com nossas expectativas, e quando isso não acontece, nos frustramos candidamente. Por isso confiamos nas pessoas, porque esperamos que elas ajam de certa maneira quando acreditamos que as conhecemos, e nos frustramos quando elas nos decepcionam, nos traem ou fazem algo "fora de caráter". Por isso governos desabam quando existem pontos fora da curva e agentes extraordinários como a agencia limitada "racional" do mercado ou as ações de políticos, ativistas e organizações diversas fogem do esperado. Humanos, lembrando de Lévi-Strauss, são seres que criam estruturas de visão de mundo muito binárias e estáveis, mas isso se mostra falho num mundo cada vez mais imprevisível.
Se fôssemos todos robôs e máquinas que nunca quebrassem ou se
danificassem, quiçá tudo ficaria eternamente estático e o sistema
funcionaria eternamente, mas não, somos humanos eternamente falhos que
vivem sonhando coisas fora da realidade, porque nós não conseguimos ver a
realidade. Por que eu digo isso? Como diz Merleau-Ponty, a realidade
que vemos, percebemos e entendemos é condicionada por nossos sentidos e
capacidades físicas limitadas. Em uma analogia aos periféricos de um
computador, é como se nós tivéssemos periféricos como olhos, língua,
ouvidos e pele com tato que recebem informação do mundo e transmitem
para nosso processador interno, o cérebro, que não tão convenientemente,
esta programado para entender a realidade de uma maneira específica,
uma maneira humana. Assim, nossa cultura e modo de fazer a vida é eternamente determinado por uma perspectiva de mundo completamente ideal, processada por um cérebro condicionado evolutivamente, que nos faz criar estruturas sólidas e civilizações avançadas que ironicamente, por serem baseadas em preconceitos e expectativas sólidas, se derrocam por si mesmas assim que as ações humanas, sempre baseadas em ideais e perspectivas irreais, criam problemas que destroem a esperança de estabilidade. A história é sublime em mostrar como impérios ruem, povo se levantam, mudanças estruturais acontecem e o desenvolvimento tecnológico cria cada vez mais rupturas na visão do social.
Mas como isso afeta as mulheres em particular? Bem, no começo desse texto eu queria começar falando sobre a idealização da mulher, mas eu não achei que seria fácil para o leitor entender meu ponto sem antes entrar nessa tangente sobre nosso cérebro e nosso corpo como periférico para a percepção da realidade, seja o que a realidade for de verdade (se é que existe verdade). Hoje em dia, como eu disse, a mulher vive a melhor e a pior fase da história para ela, se por um lado a mulher hoje é agraciada por direitos, garantias e privilégios que nunca antes na história ela teve, ela também vive completamente objetificada e sexualizada num mundo cada vez mais pornográfico, contudo, ironicamente pressionada a ser bem sucedida, pura e inclusive intocada para um homem num mundo regido pela lógica do mercado e do capital. E por mais que algumas pessoas hoje em dia digam que a democracia esta morrendo pouco a pouco, reforçando o conservadorismo que supostamente diminuiria uma pornografização da cultura e exista muita censura no oriente, e também em algumas partes do ocidente (Hungria, Polonia, etc.), o capitalismo segue mais vivo que nunca, cada vez mais pujante e cada vez mais estruturado, permeando e atravessando cada aspecto da nossa vida e como sabemos, o capitalismo não tem pudor. A China e Rússia, muitas vezes vistas como nações contra-hegemonicas, conservadoras, em contra da libertinagem do Ocidente, vivem realidades não muito dissimilares desses países ocidentais, não é preciso ir para lá para ver os bordeis, uso de álcool e outras drogas, o aborto, a busca incansável pela fama na internet e a sexualização exacerbada do corpo feminino e sua objetificação em jogos e na mídia. O mundo inteiro já foi ocidentalizado em maior ou menor medida e a divisão, que muitos fazem do mundo entre oriente e ocidente, já não me parece tão contrastada como antes.
A mulher nunca foi considerada uma pessoa no sentido próprio que lhe cabe ao conceito de pessoa como ser complexo, inteligente e provido de autonomia, muito pelo contrário, a pessoa que se lhe aplica a etiqueta de mulher sempre foi um conceito, uma identidade, uma coisa ideal que nós precisamos criar no passado para dar função e sentido a realidade que percebíamos dentro das sociedades antigas. Por isso é fácil entender que, vendo o mundo de forma binária e simplista, a partir de padrões, a partir do momento que a mulher tinha a capacidade reprodutiva e o homem maior força e capacidade de fertilizar uma mulher, surge uma divisão de papeis, por puro curso natural, que faz com que criássemos identidades para cada um dos sexos, os gêneros. Mas aí que entra o problema, se por um momento na história essa divisão de papeis fez sentido para manter uma sociedade arcaica viva e se reproduzindo pela divisão de trabalho (homem assumindo o papel de provedor e a mulher de cuidadora do lar), essa mesma divisão criou e disseminou perspectivas ideais que se mantiveram no tempo do que cada papel era, desumanizando a pessoa e etiquetando sua existência a uma simples expectativa e normativa do que ela deveria ser e fazer. Divisão que criou disparidades de poder tão grandes que a pessoa que é mulher vive hoje em dia condenada a ser vista por suas qualidades mais o menos femininas e não por sua humanidade. Para muitos homens hoje em dia a mulher é vista como um objeto de desejo, seja na forma de um corpo sexualizado ou uma pessoa idealizada mágica e ideal que serve para satisfazer os prazeres mais carnais e até emocionais do homem, um apoio, uma ancora, uma ninfa cordial e leal, pura e bela que vem para resolver todos os seus problemas. E claro, a maior representação da visão da mulher esta na mídia e no conteúdo consumido na internet que vai desde a pornografia mais clara e tácita aos jogos, propagandas e comerciais, no uso do corpo feminino para ganhar seguidores, nas redes sociais, etc. Isso fica mais evidente na porcentagem de homens, especialmente jovens, que hoje em dia consomem muita pornografia seja por vontade própria ou passivamente em quase todos os lugares da internet, seja no feed de suas redes sociais, especialmente o TikTok ou qualquer outro lugar o que fortalece essa perspectiva da mulher como objeto.
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[Jogo hipersexualizado e super popular da SHIFT UP, empresa Sul Coreana, onde o protagonista (você) se relaciona com as personagens e as usa para a guerra contra invasores alienígenas.] |
Mas bem, claro, eu não digo que o homem também não tenha suas próprias particularidades e desvantagens num mundo regido por normativas e expectativas irreais num mercado capitalista que mercantiliza e objetifica tudo pelo lucro. A depressão e solidão masculina, a desigualdade na escolarização e a porcentagem na participação em faculdades, o numero de suicídios, a morte em guerras ou as expectativas altíssimas de status e sucesso que um homem deve adquirir são claramente um problema real, no entanto, o homem não vive o fenômeno de hipersexualização e objetificação da mesma maneira que uma mulher. No mundo atual um homem se valoriza por seu caráter, esforço e capacidade de alcançar sucesso na vida, e se apesar de que o corpo masculino é idealizado na sua forma mais forte e viril isso não determina tanto o seu valor quanto o seu capital econômico, social ou político. Por outro lado, a mulher apenas é valorizada por seu corpo e na capacidade de cumprir suas expectativas sociais. Historicamente a mulher, a parte de algumas exceções, não é bem representada por sucessos científicos, culturais, políticos ou econômicos. Iconoclastia e sucesso feminino só existe no mundo das celebridades e da estética, porque justamente, é só isso que um mundo determinado por expectativas sociais baseadas em ideais e identidades prescritas por uma visão anacrônica da realidade levam. Isso é o que as feministas chamam de patriarcado, e eu sei, a palavra não tem uma boa fama e é por isso que não utilizei até agora, mas em uma medida ou outra, apesar da perspectiva feminista e clássica de patriarcado não necessariamente concorde com o que eu posso ter escrito, define a estrutura de poder que hoje rege e regiu por milênios a maior parte da cultura humana.
Eu acho que chegando até aqui, é importante refletir sobre o que é uma mulher, especialmente tendo em conta que mulher, tanto como o homem, ou qualquer outro tipo de gênero, também é apenas um conceito que tipifica e etiqueta uma pessoa a uma determinada expectativa social. Mulheres não são pessoas, muito pelo contrário, pessoas são mulheres. Refletir sobre isso e ver o humano detrás da máscara é muito importante, não só porque não somos, e não deveríamos, ser regidos por categorias e identidades, já que o identitarismo também tem sua face inumana, mas porque é entendendo que somos determinados por nossa evolução a perceber o mundo de uma maneira mais simplista e categórica, que podemos abrir o caminho para nos livrarmos de expectativas irreais e normativas ridículas que só fazem com que fiquemos cada vez mais longe uns dos outros, coloquemos gasolina no fogo da guerra entre sexos e gêneros e desumanizemos nossas relações e perspectivas de mundo.
Hoje em dia a mulher, como conceito, não deveria estar apenas atrelada a funções maternais e de reprodução, mas também a uma visão mais humana e utilitária que entenda que existem pessoas complexas atrás de um corpo que tem órgãos reprodutores e glândulas mamarias. Da mesma forma, acredito que o homem deveria ser livrado das cadeias que o legado de sua vitória sobre a determinação do gênero feminino lhe deu; um homem deveria ser entendido como uma pessoa com emoções e sentimentos e não como uma maquina de sucesso que deve ser um garanhão que pega todas. Só assim podemos criar um mundo mais humano e compreensivo, com mais equidade, onde se respeitem as diversidades e em onde todos possam ser capazes de serem suas próprias versões de si mesmos, seja qual papel ela queira assumir na sociedade.
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